A dança balinesa do G20 e as palavras tranquilizadoras de Biden
"Xi tem poucas razões para confiar em Biden – ou melhor, no combo que, dos bastidores, monta todo o enredo", diz Pepe Escobar
A cultura balinesa, um perpétuo exercício em sutileza sofisticada, não distingue entre o secular e o sobrenatural – sekala e niskala. Sekala é o que nossos sentidos conseguem discernir. Como, por exemplo, os gestos ritualizados dos líderes mundiais – os reais e os secundários – em um G20 altamente polarizado.
Niskala é o que não pode ser percebido diretamente, mas apenas "sugerido". O que também se aplica à geopolítica.
Em Bali, o ponto alto talvez tenha trazido uma intersecção entre sekala e niskala: o badaladíssimo encontro cara a cara entre Xi e Biden (ou melhor, o encontro cara a fone de ouvido).
O Ministério de Relações Públicas chinês preferiu ir direto ao cerne da questão e selecionar os Dois Pontos Altos.
1. Xi disse a Biden – ou melhor, a seu fone de ouvido – que a independência de Taiwan é um assunto simplesmente fora de questão.
2. Xi também espera que a OTAN, a União Europeia e os Estados Unidos venham a se engajar em um "diálogo amplo" com Moscou.
As culturas asiáticas, sejam elas balinesas ou confucionistas – são avessas a confrontações. Xi colocou três camadas de interesses em comum:
- evitar conflito e confrontação, e levar à coexistência pacífica,
- desenvolvimento em que os países se beneficiam uns aos outros
- promover a recuperação pós-covid em nível global, lidar com as mudanças climáticas e enfrentar de forma coordenada os problemas regionais.
É significativo que a reunião de três horas e meia tenha tido lugar na residência da delegação chinesa em Bali, e não nas instalações do G20. E que ela tenha sido solicitada pela Casa Branca.
Biden, segundo os chineses, declarou que os Estados Unidos não desejam uma Nova Guerra Fria, não apoia a independência de Taiwan, não apoia as "Duas Chinas" nem a "uma China, uma Taiwan", não busca se "desacoplar" da China e não deseja conter a China.
Mas digam isso aos straussianos/neocons/neoliberalcons que se inclinam à contenção da China. A realidade mostra que Xi tem poucas razões para confiar em Biden – ou melhor, no combo que, dos bastidores, monta todo o enredo. Então, no pé em que as coisas andam, continuamos em niskala.
O jogo soma-zero
O Presidente da Indonésia, Joko "Jokowi" Widodo ficou com péssimas cartas nas mãos: como realizar um G20 para discutir segurança alimentar e energética, desenvolvimento sustentável e questões climáticas quando tudo que existe sob o sol está polarizado pela guerra na Ucrânia.
Widodo fez o melhor possível, conclamando todo o G20 a "pôr fim à guerra", com a insinuação sutil de que "ser responsável significa criar situações que não sejam de soma-zero".
O problema é que boa parte do G20 chegou a Bali querendo uma soma-zero – buscando confrontação (com a Rússia), e quase nenhuma conversa diplomática.
As delegações dos Estados Unidos e da União Europeia pretendiam esnobar abertamente o Chanceler russo Sergey Lavrov a cada passo. Com a França e Alemanha foi diferente: Lavrov teve rápidas conversas tanto com Macron quanto com Scholz. E disse a eles que Kiev não quer negociar.
Lavrov também revelou algo de grande importância para o Sul Global:
"Os Estados Unidos e a União Europeia entregaram ao Secretário-Geral da ONU promessas por escrito de que as restrições às exportações de grãos e fertilizantes russos serão suspensas – vamos ver como isso será implementado".
A tradicional foto do grupo antes do início dos trabalhos do G20 – um ritual que marca todas as cúpulas realizadas na Ásia – teve que ser adiada. Porque – quem mais seria? – "Biden" e Sunak se recusaram a estar na mesma foto que Lavrov.
Histeria infantilóide e nada diplomática desse tipo só faz ofender profundamente a graça, a gentileza e o ethos de não-confrontação de Bali.
A versão ocidental é que "a maioria dos países do G20" queria condenar a Rússia quanto à Ucrânia. Bobagem. Fontes diplomáticas insinuaram que o placar verdadeiro era de 50/50. A condenação vem do bloco Austrália, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido, Estados Unidos e União Europeia. A não-condenação do grupo Argentina, Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Arábia Saudita, África do Sul, Turquia e, é claro, Rússia.
Em termos gráficos, o Sul Global contra o Norte Global.
A declaração conjunta, portanto, irá se referir aos impactos da "guerra na Ucrânia" sobre a economia global, e não à guerra da Rússia na Ucrânia".
O colapso da economia da União Europeia
O que não vinha acontecendo em Bali envolveu a ilha em uma camada adicional de niskala. O que nos leva a Ancara.
A névoa ficou mais espessa porque, no pano de fundo do G20, os Estados Unidos e a Rússia conversavam em Ancara, representados pelo diretor da CIA William Burns e pelo diretor da SVR (serviços de inteligência estrangeira) Sergei Naryshkin.
Ninguém sabe ao certo o que está sendo negociado. Um cessar-fogo é apenas um dos cenários possíveis. Mas a retórica acalorada vinda da OTAN em Bruxelas e dirigida a Kiev sugere que uma escalada irá prevalecer sobre algum tipo de reconciliação.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, foi peremptório, de facto e de jure: a Ucrânia não pode e não irá negociar. A operação militar especial, portanto, irá continuar.
A OTAN vem treinando novas unidades. Os próximos alvos possíveis serão a usina nuclear de Zaporizhzhya e a margem esquerda do Dnieper – ou até mesmo uma maior pressão ao norte de Lugansk. De sua parte, os canais militares russos colocam a possibilidade de uma ofensiva no inverno sobre Nikolaiev: a apenas 30 quilômetros das posições russas.
Os analistas militares russos sérios sabem o que os analistas sérios do Pentágono têm também que saber: a Rússia levou ao campo de batalha ucraniano apenas uma fração de seu potencial militar. Apenas uns poucos soldados do exército russo foram convocados, a maioria deles sendo spetsnaz – forças especiais. Quem de fato luta são as milicias das Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk, os comandos Wagner, os chechenos de Kadyrov e voluntários.
O repentino interesse dos americanos em conversar, e Macron e Scholz se aproximando de Lavrov apontam para o cerne da questão: a União Europeia e o Reino Unido talvez não consigam sobreviver ao próximo inverno, o de 2023-2024, sem a Gazprom.
A Agência Internacional de Energia calculou que o déficit total, naquele momento, se aproximará 30 bilhões de metros cúbicos. E tudo isso pressupõe circunstâncias "ideais" para este próximo inverno: em geral quente, a China ainda sob lockdowns, um consumo de gás muito mais baixo na Europa e até mesmo um aumento na produção (na Noruega?)
Os modelos da Agência Internacional de Energia vêm operando com duas ou três ondas de aumento de preços nos próximos doze meses. Os orçamentos da União Europeia já estão em alerta vermelho – compensando as perdas causadas pelo atual suicídio energético.
Quaisquer custos adicionais imprevisíveis ao longo de 2023 significarão que a economia da União Europeia entrará em total colapso: fechamento de fábricas em todo o espectro, o euro em queda livre, a subida da inflação, a dívida corroendo todas as latitudes, dos países do Club Med à França e à Alemanha.
É claro que a dominatrix Ursula von der Leyen, líder da Comissão Europeia, deveria estar discutindo todos esses tópicos – defendendo os interesses dos países da União Europeia – com os atores globais, em Bali. Mas, muito pelo contrário, mais uma vez sua única agenda foi a demonização da Rússia. Sem qualquer niskala, apenas com a mais tosca dissonância cognitiva.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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